Publicado em 15/04/2006
“Espaço plural e diversificado, não confessional, não governamental e não partidário, que articula de forma descentralizada, em rede, entidades e movimentos engajados em ações concretas”. O trecho, da carta de princípios do Fórum Social Mundial (FSM) aprovada em 2001, norteará também os objetivos do Fórum de Abril, que será realizado em Recife (PE) de 20 a 23 deste mês. De acordo com os organizadores, o evento - que juntará a segunda edição do Fórum Social Brasileiro e um fórum temático ligado ao FSM - não terá como ignorar as marcas deixadas pela crise política dos últimos dois anos. O desafio, no entanto, é manter o debate apartidário e transformar a experiência brasileira em ações concretas de controle social e promoção da participação.
O tema - Caminhos para um outro mundo possível: a experiência brasileira - sugere o que entrará na pauta dos debates este ano. Entretanto, de acordo com Moema Miranda, coordenadora do Ibase e uma das organizadoras do Fórum, nem só a crise política ganhará destaque. “O encontro tem uma coisa particular. É um Fórum temático em que a sociedade vai debater a situação atual do Brasil”, resume. Segundo ela, desde o início da atual crise política, deflagrada em maio do ano passado, os discursos estão polarizados: há os que são a favor do governo e os que são contra. “Isso não ajuda muito. O Fórum deve ser o espaço em que a sociedade se confronta com ela mesma. Não é só o caso de avaliar o governo, mas a relação da sociedade civil organizada com ele”, analisa.
Para Francisco Whitaker, membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz e um dos organizadores dos fóruns sociais brasileiro e mundial, o Fórum de Abril é inevitavelmente um momento de avaliação. “Vamos avaliar todos os atores desse processo político: sociedade civil, partidos políticos e governo. A eleição do Lula criou uma expectativa no mundo inteiro. Foi a eleição de um presidente a partir de um movimento social de 20 anos, das bases. Mas depois veio a frustração. Temos de analisar o porquê de não ter dado certo. O que aconteceu?”, questiona.
O Fórum está organizado em quatro áreas de diálogo: Os sujeitos políticos e suas relações; Projetos de desenvolvimento alternativo ao neoliberalismo; A resistência antiimperialista e alternativas de integração solidária e Democratizar o Estado: por uma nova institucionalidade. Whitaker explica que essas áreas foram sugeridas pela organização, mas uma questão transversal persiste: até que ponto nossa dependência tem condições de fazer frente às regras impostas pelo modelo econômico vigente?
Dentro das áreas de diálogo, os organizadores não estipularam nenhum tema para os debates e adotaram a autogestão dos participantes. “Às vezes os organizadores forçam a barra, propondo questões que acham importante. Mas se um determinado tema não foi proposto por nenhum participante é porque não era tão importante assim”, defende Whitaker. “No princípio, olhamos as inscrições e vimos que cada organização apresentava o seu pedaço da realidade e fugia um pouco da proposta central. Mas depois, percebemos que dava pra juntar os retalhos e os temas cobriam muita coisa”, conta. Para Gilson Reis, membro da Executiva Nacional da CUT, o Fórum não tem modelo definido. “É mais uma busca, uma experiência. Vamos tentando as várias maneiras de buscar o melhor formato”, explica.
Resistência e novas alternativas
Duas das grandes áreas de discussão – “Projetos de desenvolvimento alternativo ao neoliberalismo” e “A resistência antiimperialista e alternativas de integração solidária” - trazem para a centralidade do debate temas recorrentes em encontros de movimentos sociais ao redor do mundo. Apesar da popularidade da temática em rodas de discussão da esquerda, os organizadores são unânimes em afirmar que o tema está longe de se esgotar.
“A temática ainda tem muito o que acrescentar em encontros como o Fórum de Abril. Não se trata só de avaliar as propostas, mas a realidade. A grande dificuldade é sair da crítica e avançar nos métodos”, defende o diretor de relações internacionais da Abong, Sérgio Haddad. Ele explica ainda que a experiência dos movimentos sociais é muito em cima da crítica da realidade, mas que estes perderam muito do seu arcabouço a partir das derrotas sofridas pelas experiências socialistas.
A coordenadora do Ibase é enfática ao defender a importância dos temas de resistência aos modelos imperialista e neoliberal. “Essa é a temática. O que vivemos é uma crise de alternativas, avançamos no diagnóstico mas não nos prognósticos. Quando falamos sobre isso sempre acabamos naquela história de crescimento com distribuição. Mas é um desafio crescer sem ter o mercado no centro de tudo”, analisa Moema Miranda. O dirigente da CUT concorda e acrescenta uma perspectiva pragmática: “Muito já foi discutido, mas novas experiências sempre são construídas. E estas não se traduzem sem financiamento público ou privado. Todas as propostas são bem-vindas”, conclui Gilson Reis.
A questão para qual a representante do Ibase chama a atenção - a da viabilidade do crescimento econômico com distribuição de renda – também é analisada por Haddad. “É preciso ter regra para esse desenvolvimento. O que vemos é um capitalismo sem regra, que protege mais o capital que o trabalhador. O Brasil foi o país que mais cresceu no último século e continua com os mesmos e vergonhosos indicadores sociais”. E completa: “O grande capital não paga imposto, e não existem mecanismos que promovam a distribuição de renda”.
A experiência brasileira
O caráter temático do Fórum dá um tom diferente aos debates. O foco na experiência brasileira, segundo a organização, pretende ampliar o diálogo, substituindo a disputa entre pontos de vista pela análise das diferentes propostas. “Os movimentos sociais têm que fazer o balanço do que há de melhor e pior no governo”, avalia Gilson Reis, que destaca a atuação do Brasil no cenário internacional como o ponto forte do governo, através do combate à Organização Mundial do Comércio (OMC), à Associação de Livre Comércio das Américas (Alca) e à guerra no Iraque. “Mas o lado negativo é a política econômica que mantém os fundamentos da anterior e essa política fiscal que retira grande volume de dinheiro da saúde e da educação. Esses são os dois pólos de discussão que devem estar presentes em várias mesas”, acredita.
Para Gilson, não é só uma avaliação feita por entidades brasileiras, mas também por organizações de fora do Brasil. “Elas também guardavam expectativas em relação a esse governo. Na América Latina houve uma virada depois da eleição do Lula. Na Europa, vemos os processos de pressão na França e as eleições na Itália”, afirma.
As lições que podem ser tiradas da conturbada experiência brasileira dos últimos anos é positiva na opinião otimista do representante da CUT. “A experiência brasileira aprofunda a democracia, e isso nos é muito caro. O governo vem demonstrando muita capacidade de absorção da sociedade civil e começa a haver um retorno do financiamento do Estado na educação. Isso são coisas que vêm ajudando a romper as amarras do neoliberalismo”, avalia Gilson. A diretora do Ibase, no entanto, é mais dura com o governo: “Talvez a nossa contribuição maior seja aprender com os nossos erros. Tivemos uma crise na nossa prepotência que mostrou por onde não devemos ir. O governo que se desconectou dos interesses da população para se conectar à agenda neoliberal”, critica Moema.
A riqueza de elementos no cenário brasileiro para a construção de agendas comuns para o futuro é unanimidade entre os organizadores. Segundo Francisco Whitaker, há uma série de temas que são permanentes, como a segurança pública, por exemplo. Outros, ainda, ganharão destaque maior devido à conjuntura. “A reforma agrária é um deles, pois era fundamental na época da eleição do Lula. Por que não foi feita?”, questiona o organizador.
Sérgio Haddad destaca a forma como o Brasil vem exercendo a sua democracia, não só direta, mas participativa, como a maior contribuição que o país pode dar em debates como esse. Ele acrescenta a importância da convivência das diferentes organizações nacionais, que representam interesses muito particulares, na construção da democracia brasileira. “Essa convivência de diversidades temáticas se alia a um contexto muito particular da sociedade brasileira. O MST é um exemplo, assim como a força de algumas centrais sindicais. A própria representatividade da Associação Brasileira de ONGs, no contexto da América Latina, é muito importante”, afirma Haddad.
A área temática que promete impulsionar muitos dos debates do Fórum de Abril é a que trata da democratização do Estado. Segundo Haddad, é natural que depois da crise dos últimos dois anos a reforma política ganhe centralidade no encontro.
“Queremos saber de qual participação estamos falando. E de como alcançar uma democracia de alta intensidade. Muitos dos instrumentos de participação acabaram se esvaziando”, avalia Moema. Os instrumentos de controle público que dificultam os abusos de poder por parte dos políticos e a corrupção estarão em alta, segundo ela. Dentro da temática, Gilson acrescenta a preocupação com o financiamento das eleições. “É preciso lutar pela reforma política no país. Não dá mais para o Estado e as eleições serem coordenados pela iniciativa privada. Temos de discutir o financiamento público de campanhas e a fidelidade partidária”, defende.
Expectativas para um outro mundo
Este ano, cerca de 300 atividades foram inscritas por mais de 500 organizações. O leque de temas vai desde a igualdade racial e de gênero à questão do agronegócio e da dívida externa. O prazo para a inscrição de atividades já se esgotou, mas os participantes ainda podem se inscrever no site do encontro: www.fsb.org.br.
Sérgio Haddad acredita que o fórum deste ano não vá ser muito grande, o que é positivo na sua opinião. “Vai nos permitir bastante conversa. Se conseguirmos ter um sistema interno de coletas dos temas e das experiências discutidos nos debates, vão dar um grande impulso para a continuação desse trabalho. A discussão do nosso modelo de desenvolvimento saiu da pauta da mídia. O tema "Brasil" deveria mais do que nunca ser posto em debate em ano eleitoral”, analisa. O representante da Abong frisa ainda a necessidade de convocar a população a participar das atividades do Fórum. “Temos de convocar as pessoas para discutir o Brasil, coisas que temos feito pouco ultimamente”.
A expectativa de Moema Miranda é que a fragmentação e o isolamento interno vividos pela sociedade civil nos últimos anos seja superada. Segundo ela, o debate intra-sociedade civil polarizou-se entre os que eram contra e os a favor do governo. “Espero que realmente possamos reconstruir esse diálogo, que foi importante para avançarmos no processo democrático até aqui e permitiu, entre outras coisas, o nascimento do Fórum Social Mundial”, diz. Para Gilson, este momento é histórico. “O Fórum Social Brasileiro FSB acontece num momento importante da história brasileira. Tem um setor que tenta voltar a um modelo neoliberal. Temos de ficar com um olho no gato e outro no rato”, brinca.
Para Whitaker, a expectativa é simples: que seja um momento de diálogo e nada mais.
Divulgação Luísa Gockel
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