quarta-feira, 11 de abril de 2012

Cebola nos olhos e palavras entaladas na garganta



Nesta segunda-feira (9), Liniane Haag Brum lançou o livro Antes do passado – O silêncio que vem do Araguaia, uma espécie de biografia póstuma, documental e romanceada do seu padrinho e tio, Cilon Cunha Brum, desaparecido na guerrilha do Araguaia. Em uma cena do livro, a sua avó chora, diz que é por causa da cebola e a neta conclui: “Depois desse dia soube que o medo, o silêncio e o tio eram como se fosse o mesmo.”

Por Christiane Marcondes, da redação do Vermelho

Em 1981, Eloah Cunha Brum, acuada pelo medo e o sofrimento, começou a implorar por notícias do seu filho, Cilon, jovem líder comunista desaparecido no Araguaia em 1971. Escreveu uma carta às autoridades responsáveis: “Venho por meio desta, como mãe aflita, solicitar informações sobre o destino do meu filho Cilon Cunha Brum”.

Relatou com poucas palavras e desaforada honestidade tudo o que sabia -- inclusive o codinome Simão --e o que queria:

“Rogo, pois, em última instância, que me forneça informações precisas que possam matar a aflição que vivo há dez anos, o que para uma mãe representa uma eternidade”.

A carta não teve resposta, não naquela época, não enquanto Eloah viveu. até 1989, como uma “mãe” para sempre desassossegada que nunca deixou de esperar pelo filho desaparecido: “Sua cadeira amarela na porta da casa – o corpo ali encaixado, a bengala ao lado. A mãe de Cilon, minha avó Lóia, com a atenção sempre na rua: uma imagem que falava e que todo mundo sabia o que queria dizer”.

Este é um trecho do livro Antes do passado – o silêncio que vem do Araguaia, da neta de Eloah, Liniane Haag Brum. Na obra, a editora e roteirista da TV Cultura finalmente consegue responder postumamente às questões da avó, dirigindo-lhe não uma, mas muitas e longas cartas em que relata sua peregrinação por vários locais e pelo Araguaia em busca da memória e do corpo do tio.

A empreitada da autora, estreante nas letras, assemelha-se a uma odisseia digna de Homero, não só pela coragem que exigiu como pelo lirismo da narrativa. O livro atende também a uma angústia de infância. Liniane foi batizada em 1971 pelo tio Cilon, em sua última aparição pública. A afilhada cresceu, mas nunca se acostumou à ausência do padrinho nos momentos de reunião familiar, como Páscoa ou Natal, e incorporou a dor da família e a crença da amada avó: “Cilon voltará um dia”.

Realmente "voltou" nas páginas escritas com tensa sensibilidade pela afilhada, que Cilon nunca conheceu; já a menina, ah, essa não só “conheceu” o tio, como conversou com ele na imaginação e reconstituiu seus últimos momentos entrevistando pessoas que participaram do seu passado. Em São Paulo, o então estudante Cilon conheceu Rioco, a “baixinha”, que se tornaria, depois de sair da prisão, onde foi parar em 1972, esposa de José Genoíno, que também viveu como lavrador no Araguaia, dividindo a mesma casa com João Amazonas.

Rioco estudava Letras na USP, Cilon, Economia na PUC, onde era líder estudantil. Rioco achava engraçado o sotaque do colega de movimento, gaúcho. Repetiu na entrevista para o livro algumas frases que ele soltava na Padaria Sagres, na Vila Mariana, onde se encontravam para falar de política: “Me dá um pingado e um pão com manteiga”. E Rioco sorria, segundo Liniane, não só ao rememorar palavras, mas também as roupas diferentes. “Ele andava todo arrumadinho, as camisas alinhadas e bem passadas. Muito diferente do pessoal da política estudantil e da militância”.

Liniane explica a elegância do padrinho, contando que ele trabalhava em uma agência publicitária e ganhava muito bem, largou tudo pela luta na qual empenhou a própria vida. Um agente do DOPS foi investigá-lo, tempos depois, no antigo emprego e ficou chocado com sua ficha funcional: “Esse rapaz ganha cinco vezes o meu salário e está metido com a esquerda?”

O “rapaz” que surpreendeu o policial também surpreendeu a família quando Liniane e o pai, Lino, fizeram uma de muitas incursões ao Araguaia: “Fui com minha filha ao Araguaia colher material para o livro e percebemos o carinho que a população de lá tem até hoje pelo Cilon, passados 40 anos eles se lembram”, diz Lino Brum Filho.

Zezinho do Araguaia, integrante do PCdoB há 50 anos, conviveu com os comunistas no Araguaia, levando e retirando gente da mata, como Ângelo Arroyo. Zezinho confirma o carisma do “comprido”, outro apelido de Cilon: “Comprido foi um dos companheiros que fez amizade não só com o povo, mas com os militares. Quando ele saiu pela última vez e não voltou, todo mundo sentiu. Teve quem sofreu por tentar ajudá-lo, como a Lia, que levou frutas para ele”, recorda, citando um nome ou codinome entre dezenas que fervilham na sua memória muito viva da guerrilha no Araguaia.

A guerrilha foi exterminado pela ditadura há quase quarenta anos, mas Zezinho diz que o terror ainda domina os habitantes da região. A repressão continua sua ronda, afirma, inclusive com ajuda dos missionários estadunidenses que vivem entre os índios, julgando-os um povo de “feiticeiros” que precisa da salvação, indigna-se Zezinho.

Liniane compartilha da mesma opinião que o comunista, o livro deixa claro que o medo ainda paira nas matas que abrigam insepultos não só comunistas desaparecidos, mas muitos camponeses e moradores igualmente capturados pelos militares. A ameaça chega ao ponto de a escritora inventar os nomes de alguns personagens para proteger a verdadeira identidade.

Mentiras indignas

Em 1996, a família recebeu do governo uma certidão de óbito de Cilon. Pouco depois veio a informação de que ele havia morrido em combate em 1973. Lino revolta-se: “Sabemos que é uma mentira dos relatórios das forças repressoras. No Natal de 1973, Cilon foi preso e depois executado. Seu corpo não foi enterrado, mas se degradou na mata”.

Em busca da verdade, Liniane refez todos os percursos do tio, descobrindo, inclusive, a árvore sob a qual os militares o executaram. O grande enigma foi solucionado, mas a ausência do corpo e o bloqueio emocional entre os familiares são insuperáveis. Um livro como esse, que apresenta a história sob um ponto de vista além do político, discorrendo sobre os danos à sociedade e as perdas afetivas irreparáveis, pode ser um bom começo para fazer justiça por quem lutou e morreu pela pátria livre: “Liniane conseguiu de certa forma trazer a memória do tio à vida, ela precisava disso e a família também”, supõe Rioco.

O pai da autora concorda e acrescenta: “Esse livro é um resgate familiar, mas, ao mesmo tempo e acima de tudo, é a história recente deste país, a história que teimam em não nos contar. Temos que cobrar a verdade dos fatos, esse é um compromisso nosso com gerações futuras, netos e bisnetos. Eles precisam conhecer essa parte obscura da história para poderem, ainda que simbolicamente, enterrar seus mortos e desaparecidos”.


Portal Vermelho

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