segunda-feira, 26 de março de 2012

Dr. Arnaldo Lichtenstein: “Pistola de choque pode causar arritmia cardíaca e matar, sim”



A pistola de choque que matou o estudante brasileiro na Austrália pode ser letal, sim


por Conceição Lemes


O taser é uma pistola cujos “disparos” dão eletrochoque. O objetivo é paralisar possível infrator. Atualmente existem 700 mil no mundo. No Brasil, chegam a 15 mil. Aqui, está em uso pelas polícias de vários municípios e estados, como Rio de Janeiro, Acre, Bahia e Rio Grande do Sul. Deverá ser utilizada pelas forças de segurança do Brasil durante a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Tanto que governo federal, estados e cidades-sede já confirmaram que vão priorizar o uso desse tipo de armamento em instalações esportivas, estádios e seus arredores.


É a mesma arma que no último domingo, 18 de março, matou o estudante brasileiro Roberto Laudisio Curti, 21 anos, em Sydney, na Austrália.


“Embora seja considerada uma arma não letal, a pistola taser pode matar, sim”, adverte o clínico geral Arnaldo Lichtenstein, do Hospital das Clínicas de São Paulo, professor colaborador do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP. “Evidentemente uma pessoa com doença cardíaca atingida tem mais risco. Se usa marcapasso, o aparelho pode desregular. Porém, uma pessoa saudável, hígida, não está totalmente livre de risco.”


Carlos Alberto Lungarzo, membro da Anistia Internacional e professor titular aposentado da Unicamp, reforça: “O taser representa um grande perigo, pois a polícia ilude a população com o fato de que ele não é letal. Só que essa ideia embute falácias”.


DA ‘FAMÍLIA” DE BALA DE BORRACHA, GÁS LACRIMÔNEO E SPRAY PIMENTA


O taser integra a categoria das chamadas armas não letais, da fazem parte também o bastão de choque, as balas de borracha, o gás lacrimogêneo e o spray de pimenta.


Parece pistola comum, mas tem uma “bala” diferente. O gatilho aciona um sistema de ar comprimido, que impulsiona o lançamento de dois dardos. Conectados à pistola por fios metálicos, os dardos podem atingir um alvo a quase 11 metros de distância. Os dardos penetram 2,5 cm na pele e transmitem descargas elétricas de até 50 mil volts, porém com baixa corrente. Essas ondas eletromagnéticas atuam no sistema nervoso central e interrompem os sinais que o cérebro emite para o corpo. A pessoa atingida fica, então, paralisada durante alguns segundos. Seus músculos se contraem, ela treme e cai.


O choque pode afetar o corpo de duas maneiras:


* O coração se contrai pelo estímulo elétrico. Se uma carga elétrica cai num determinado ponto desse ciclo cardíaco, ela pode desencadear uma parada cardíaca. É por isso que, numa reversão de arritmia com choque, o desfibrilador tem de estar sincronizado com esse ritmo.


“Daí por que até um choque de tomada pode causar parada cardíaca, independentemente da amperagem ou corrente elétrica”, afirma o doutor Lichtenstein.


* Um choque intenso, como um raio, paralisa os músculos, inclusive o diafragma, e pode causar parada respiratória. “Lógico que o choque do taser é mais fraco do que um raio, mas vários disparos seguidos numa mesma pessoa podem, potencialmente, ter esse efeito”, expõe o médico.


“Mas não dá mesmo para garantir a inocuidade do taser?”, alguém talvez cobre. A resposta é não. Como no meio de uma briga de torcidas, por exemplo, dá para saber se o alvo tem ou não uma doença cardíaca grave? Impossível! E se essa pessoa, na queda, bate a cabeça no chão? Ela pode não morrer do choque, mas do tombo.


“Além disso, abusando da idéia de que não é mortal, a polícia nos Estados Unidos, por exemplo, usa o taser com extrema frequencia, sem necessidade e com intensidade maior para atravessar a roupa”, alerta Lungarzo.


FACILIDADE DE TRANSPORTE E USO, SEM DEIXAR MARCAS EVIDENTES, FAVORECE MUITO O ABUSO


Nos EUA, segundo estudo da Anistia Internacional, de 2001 a agosto de 2008, 334 pessoas morreram após serem atingidas por taser.


“Ao contrário do que são retratados, os tasers não são armas ‘não letais’”, diz Angela Wright, pesquisadora da Anistia Internacional lá. “Como são fáceis de transportar e usar, sem deixar marcas significativas, facilitam muito os abusos.”


Um outro estudo da Anistia ns EUA, que inclui informações de 98 autópsias, descobriu que 90% das pessoas que morreram depois atingidas por “tiros” de taser estavam desarmadas e muitas não representavam ameaça grave.


Entre elas, muitas foram submetidas a choques repetidos ou prolongados ou por mais de um policial de cada vez. Em pelo menos seis dos casos, os tasers foram usados ​​em indivíduos com problemas de saúde, como convulsões, inclusive num médico que teve um acidente de carro após sofrer ataque epiléptico. Ainda meio tonto e confuso, começou a andar pelo acostamento. O policial mandou-o parar. Como não obedeceu, recebeu sucessivos “tiros”, por não obedecer a ordem. Policiais também têm usado os tasers em crianças, mulheres grávidas e até mesmo numa mulher com demência.


“As armas de eletrochoque, como os tasers, foram lançadas para o uso geral antes de testes rigorosos e independentes sobre os seus efeitos”, preocupa-se Angela Wright. “Estudos existentes – muitos deles financiados pela indústria – concluíram que o risco dessas armas é geralmente baixo em adultos saudáveis. No entanto, esses estudos são limitados e têm apontado para a necessidade de mais compreensão dos efeitos de tais dispositivos em pessoas vulneráveis, incluindo aquelas sob a influência de drogas estimulantes ou problemas de saúde.”


Não à toa a Anistia Internacional já pediu a todos os países que suspendam o uso dos tasers. Ou, pelo menos, reduzam drasticamente o seu uso.


“O taser deve ser usado apenas imobilizar ou desarmar o agressor, desde que ele esteja armado”, completa Lungarzo. “Não deve ser empregado para imobilizar alguém que foge, mas alguém que ataca.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário