terça-feira, 18 de janeiro de 2011

A decomposição do padrão dólar e a ascensão do yuan chinês


Umberto Martins - Portal vermelho.


Perceberemos melhor a natureza das relações entre China e EUA analisando-as à luz do conceito dialético de unidade e luta. Os mesmos fatores que promovem uma forte unidade de interesses entre os dois países também contêm os elementos que estimulam a luta e os conflitos. O comércio é um bom exemplo.

No intercâmbio de mercadorias convergem muitas vontades, em transações entre as próprias multinacionais norte-americanas, no apetite dos consumidores por importados baratos, no agigantamento da rede de supermercados Wal-Mart. A simbiose parece absoluta.

A novela do câmbio

Mas este mesmo comércio, em que os interesses das duas nações se entrelaçam e se confundem, também é uma fonte de conflitos e dores de cabeça. Não é um comércio muito equilibrado. A China é superavitária, os EUA acusam o governo chinês de manipular o valor da moeda (yuan) para estimular as exportações e ameaçam retaliar com medidas protecionistas.

O câmbio é um dos temas controversos nas relações entre Estados Unidos e China que devem ser abordados nas conversas que o presidente da China, Hu Jintao, deve manter com o presidente estadunidense Barack Obama na visita que inicia nesta terça-feira (18) a Washington

Os EUA continuam reclamando da política cambial da China, que não adota o regime de câmbio flutuante e segundo Washington mantém o yuan artificialmente depreciado diante do dólar, sendo responsável, por isto, pela instabilidade monetária mundial.

Quem é culpado?

Mas tal argumento perde força na medida em que a moeda chinesa volta a se valorizar, acompanhando o declínio do dólar em todo o mundo e também em que ficam mais claros os motivos deste declínio.

O enfraquecimento da moeda norte-americana é causado pelos déficits (público e em conta corrente) e pelas emissões desbragadas realizadas pelo Federal Reserve (FED, banco central dos EUA), a pretexto de estimular a recuperação econômica.

A verdade é que a iniciativa do FED revela pouca ou nenhuma eficácia no objetivo (proclamado pelas autoridades) de incrementar os investimentos produtivos e o emprego nos EUA, mas como o dólar ainda é a principal moeda internacional, o resultado para o resto do mundo (para onde flui boa parte dos papéis emitidos) é inflação e instabilidade cambial, temperos para conflitos de divisas e prenúncios de guerra comercial.

Manipulação por manipulação

Não é de admirar que até a aliada Alemanha acusou Tio Sam de também manipular (embora de forma indireta) a “taxa de câmbio do dólar”. De quebra, isto também reduz o valor real dos ativos do país adquiridos por estrangeiros, ao desvalorizar a dívida externa americana, impondo prejuízos aos países que (como China e Brasil) investiram parte substancial de suas reservas em papéis referenciados no dólar. Nessas condições, a política cambial faz diferença, pois deixar as cotações ao sabor do mercado é fazer o jogo dos EUA, e a China procura se defender.

De todo modo, são visíveis as mudanças na política chinesa para o câmbio. Em 2008, depois que a recessão se instalou nos EUA, o governo do gigante asiático adotou uma política de câmbio fixo, impedindo que as flutuações do dólar afetassem o valor do yuan e as exportações, já fortemente impactadas pela contração do mercado americano.

Isto durou até meados do ano passado. Em resposta às crescentes pressões e ameaças provenientes das potências capitalistas (com os EUA à frente) e alegando a intenção de fortalecer o mercado interno, a China decidiu flexibilizar o câmbio em junho de 2010.

Conversibilidade do yuan

Não adotou o câmbio flutuante, mas permitiu uma gradual valorização do yuan. Desde então, a moeda chinesa acumula alta superior a 3% em relação ao dólar. Pode ser pouco para as pretensões de Washington (que fala em defasagem entre 30 e 40%), mas parece um passo na direção de uma flexão mais pronunciada nos rumos da política cambial chinesa.

Na última sexta-feira (14), o governador-assistente do Banco Popular da China (banco central), Li Dongronp, informou que o país vai intensificar a política de flexibilização da taxa de câmbio e abertura de seus mercados financeiros.

A mudança não é só, nem principalmente, uma resposta aos EUA e outros países que criticam a política cambial da China. O governo tem razões próprias para caminhar na direção de uma flexibilização maior da política cambial, inclusive o interesse em ampliar a conversibilidade do yuan, ou seja, a aceitação da moeda chinesa como meio de pagamento e referência nas transações econômicas internacionais.

Novo sistema monetário

Neste sentido, Li Dongrounp disse que o banco central vai trabalhar para a ampliação dos regulamentos que orientam a circulação além-fronteira do yuan, permitindo depósitos de exportadores e estimulando investimentos externos em yuan. Já se falou igualmente em promover no interior do Bric o comércio baseado nas moedas dos países que compõem o grupo (Brasil, Rússia, Índia e China), onde a proeminência (da moeda) chinesa é notória.

De olho no futuro, as autoridades chinesas apostam na substituição do dólar como padrão monetário internacional e querem abrir caminho para uma nova ordem econômica, talvez fundamentada num sistema de multidivisas, como sugeriu recentemente um dirigente do FMI.

Em entrevista aos diários americanos Wall Street Journal e Washington Post, o presidente da China, Hu Jintao, enfatizou a necessidade de cooperação com os Estados Unidos em áreas que vão de novas fontes de energia à exploração espacial. Mas chamou "de produto do passado" o atual sistema monetário mundial dominado pelo dólar e citou medidas recentes para fazer do yuan uma moeda global.

A manutenção de uma moeda fiduciária como padrão internacional das relações econômicas, com as funções de equivalente universal das mercadorias, meio de pagamento, unidade de referência e reserva de valor, depende obviamente da confiança dos negociantes e dos governos. Isto requer a estabilidade do seu valor relativo. A inflação envenena os negócios e transforma as relações de troca num jogo arriscado.

A queda do dólar desperta fortes desconfianças no seu papel como moeda internacional, ainda mais agora em que ocorre com o incentivo das emissões realizadas pelo Federal Reserve. É inevitável que se estudem alternativas e os EUA nada podem fazer contra isto, até porque não existe um acordo formal estabelecendo que o dólar é a moeda mundial. Não se pode esquecer que o acordo monetário de Bretton Woods, estabelecido em 1944, foi rompido em 1971 pelos próprios EUA.

Moeda e economia real

A força do dólar no passado iludiu muitos economistas e estimulou uma compreensão falsa sobre a natureza da moeda, assim como uma confusão entre moeda (no caso, o dólar) e capital, entre circulação de moeda e circulação de capital, traduzida na falsa noção de que quem emite a moeda mundial (EUA) tem o poder de determinar o ritmo e a direção da acumulação do capital.

Os fatos indicam que a força relativa de uma moeda (inclusive do dólar) reflete a força relativa da economia nacional a que está associada. Não é estabelcida, muito menos conservada, através do poder militar. O dólar derivou seu poder no passado do dinamismo sem rival da indústria estadunidense logo após a 2ª Guerra. A decadência econômica dos EUA, um processo histórico que data pelo menos dos anos 1970, determina a lenta decomposição do padrão dólar, que teremos o prazer (ou desprazer) de conferir ao longo dos próximos anos. Será um adeus arrastado, mas sem lágrimas.

O tema, porém, não deve orientar o tom amistoso que os presidentes da China e dos EUA pretendem conferir ao encontro. A intenção proclamada pelos dois dirigentes (Obama e Hu Jintao) é aplainar arestas e privilegiar convergências. Aparentemente, e por esta ocasião, prevalecerá a unidade, mas convém não esquecer as lições da dialética.

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